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Violência infantil: Goiás registra mais de 6 mil casos entre 2019 e 2021

Cabeça baixa, mãos suadas, aparência abatida. O jeito é de alguém inofensivo e dócil. Veste uma camiseta azul, bermuda e, nos pés, chinelos. Carrega no corpo várias marcas que tenta esconder. Parece envergonhado, com medo. No silêncio angustiante, seus olhinhos “gritam” por socorro. Só tem quatro anos e é mais uma vítima da violência doméstica infantil.       

A descrição é de uma entre várias histórias que elevam a triste estatística de crianças agredidas dentro da própria casa, local onde deveriam estar mais seguras. O drama retrata parte da vida de um garoto que todas as noites sofria tortura praticada pelo próprio pai. Ele não convivia com a mãe. Foi a avó materna quem o salvou do terror. O pai, então responsável legal pelo menino, disse à polícia que o agredia porque quando era pequeno também apanhava muito dos pais. O homem hoje está preso. O caso foi registrado em junho deste ano, em Goiânia, e é apenas um entre muitos citados pela delegada Marcella Orçai, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Estado (DPCA-GO).

Um levantamento feito pela Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) aponta que entre janeiro de 2019 e junho de 2021, 6.109 casos de violência contra crianças e adolescentes foram registrados no Estado. Só em 2019 foram 3.023 denúncias. No ano passado foram 2.082, enquanto nos seis primeiros meses deste registram o total de 1.004 denúncias.  

A Polícia Civil analisa, no entanto, que a redução do número de denúncias não significa, necessariamente, que os casos de agressões contra crianças e adolescentes tenham, de fato diminuído. O que caiu, na realidade, foi o número de registros contra os agressores nas delegacias. Esse cenário é atribuído, entre outros pontos, à suspensão das aulas presenciais durante a pandemia. É que as escolas têm papel fundamental, já que os educadores levam casos suspeitos ao conhecimento do Conselho Tutelar. Outro ponto está ligado ao fato das vítimas ficarem mais tempo dentro de casa, também em razão da pandemia, diminuindo o contato com outras pessoas que possivelmente possam perceber sinais de agressão.  

“Podemos dividir esse cenário em dois fatores: Uma maior dificuldade de
o Conselho Tutelar receber uma denúncia e o maior tempo de contato
entre vítima e agressor ou abusador. Sendo assim, é impossível dizer que casos
de estupro de menores ou violência infantil reduziram durante a pandemia”.
(Delegada Marcella Orçai)

Agressão Infantil no Brasil

Já em todo o Brasil, no período de janeiro de 2010 a agosto de 2020, mais de 103 mil crianças morreram vítimas de agressões, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidades, do Ministério da Saúde. O Disque 100, serviço de denúncias do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, registrou 95.247 casos de agressões sofridas por crianças e adolescentes só em 2020, número maior que o total de 2019, que registrou 86.800 casos.

Entre as vítimas de 2021 está Henry Borel, de 4 anos, que morreu com várias lesões pelo corpo e uma hemorragia no fígado após ser agredido no apartamento onde morava no Bairro da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, em março deste ano. O padrasto, o vereador afastado, Dr. Jairinho, está preso suspeito de ter torturado a criança até a morte. A mãe do pequeno Henry, Monique Medeiros, também está presa pela morte do filho. O caso chocou o País. 

Os dois casos relatados até aqui, um em Goiás e outro no Rio de Janeiro, têm mais pontos em comum: as vítimas tinham menos de seis anos de idade e foram agredidas dentro de casa. Segundo um levantamento feito pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 60% das agressões acontecem entre familiares e em casa.

Goiás no mapa da violência

Os registros de maus-tratos em Goiás são, em sua maioria, de agressão física, seguidos da violência psicológica e de tortura. Mas um outro tipo de violência acaba fugindo, muitas vezes, dos registros: a sexual. É o que explica a delegada Marcella Orçai, em entrevista ao jornal A Redação.

“E a situação se torna ainda mais triste porque podemos dizer que a maioria dos casos de violência contra crianças acontece dentro do lar. Também podemos destacar que, muitas vezes, essas agressões são praticadas pela própria família ou por pessoas que fazem parte do ciclo da vítima”, ressalta a titular da DPCA. 

Para Marcella Orçai, todos os casos são muito marcantes, mas alguns acabam impressionando mais que outros, devido à idade da criança, tempo da agressão, tipo de violência e também a alegação dos agressores, consideradas, segundo a delegada, fúteis. “Excesso de correção e os crimes de tortura física são sempre muito cruéis. Temos casos de vítimas que perdem órgãos vitais, que passam por sessões de afogamento, outras são submetidas a choque elétrico, entre diversas práticas incabíveis. Além de espancamentos que levam à morte”, lamenta.

Entre os casos marcantes de crianças que foram vítimas de violência em Goiás está o do menino Danilo de Souza, de 7 anos. O garoto sumiu no dia 21 de julho de 2020, depois de sair de casa para visitar a avó, no Parque Santa Rita, em Goiânia, mesmo Setor em que ele morava. O corpo do garoto foi encontrado seis dias depois em uma mata da região.

Na época, a Polícia Civil de Goiás divulgou que os acusados alegaram que o garoto foi morto “como forma de vingança em razão de um suposto mau comportamento”. Danilo foi asfixiado até a morte em uma área tomada por lama em uma mata na região onde ele morava. Conhecido da família, o jovem Hian Alves foi detido pelo assassinato do menino e segue preso. O caso ganhou repercussão nacional.

Denúncias e penalidades

Casos de violência infantil podem ser registrados de forma anônima pelo telefone da Polícia Civil (197), através do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), nos Conselhos Tutelares e ainda no balcão da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Goiás (DPCA-GO), localizada na Rua C-190 no Jardim América, em Goiânia. 

“Através da denúncia conseguimos acompanhar o caso
e promover proteção à criança. Os suspeitos podem 
ser presos em flagrante. Então sempre que presenciar
ou souber de algum caso de violência infantil, denuncie imediatamente”
(Delegada Marcella Orçai)

As penalidades para pessoas que cometem crimes contra crianças e adolescentes variam de acordo com a tipificação. Em casos de maus-tratos ou infanticídio, por exemplo, a pena pode chegar a dois anos de reclusão. Já para estupro de menores, se condenado, o autor pode pegar ter até 15 anos de prisão. “O responsável legal, que não é ameaçado ou também vítima, e sabe das agressões ou dos abusos sexuais contra as vítimas e se omitem, também podem responder pelos crimes da mesma forma que os agressores”, ressalta Marcella Orçai, durante entrevista ao AR.
 
O papel fundamental do Conselho Tutelar

Após a denúncia da violência cometida dentro do lar, a criança é entregue ao Conselho Tutelar, que busca encontrar outro familiar que esteja disposto a se tornar responsável legal do menor. Caso nenhum membro do grupo familiar aceite a guarda, a vítima é encaminhada para adoção.
 
Nesses casos, a ação do Conselho Tutelar é sempre de extrema importância, pois promove proteção e acolhimento às vítimas. A presidente dos Conselhos Tutelares de Goiânia, conselheira Roselei Galhardo, explica que são aplicadas medidas protetivas como encaminhamento para o Centro Especializado em Assistência Social (Creas), além de consultas médicas e psicológicas. “Por último, realizamos o acolhimento institucional, em que as famílias são acompanhadas através de visitas nas residências”, destaca ao citar que o trabalho é contínuo, sempre no sentido de garantir suporte às crianças, adolescentes e aos familiares que também são, em alguns casos, vítimas. 

Tramita no Senado Federal um projeto intitulado como Lei Henry Borel. A proposta faz homenagem ao menino assassinado aos 4 anos de idade no início deste ano no Rio de Janeiro e é voltada para a proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica.

O texto prevê proteção a quem denunciar casos de agressão infantil. Além disso, o aumento da pena se o crime de homicídio contra menores de 14 anos for praticado por familiar, empregador da vítima, tutor ou curador, ou se a criança é pessoa com deficiência ou tenha doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade.

Abandono de incapaz: violência sem marcas na pele

A conselheira Roselei Galhardo afirma que durante a pandemia somente nos 30 conselhos tutelares ativos em Goiânia houve um aumento de 40% nos registros de abandono de crianças e adolescentes. Quase sempre os casos de abandono são somados com maus-tratos. 

Dados da Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) mostram que em todo o Estado, entre janeiro de 2019 e junho de 2021, 716 crianças e adolescentes foram abandonadas. Em dezembro de 2020 a equipe do jornal A Redação noticiou o resgate de um recém-nascido abandonado dentro de uma caixa de papelão no Jardim Nova Esperança, em Goiânia. O Corpo de Bombeiros informou, na ocasião do resgate, que o bebê chorava muito quando foi encontrado ao lado de um poste. A criança foi encaminhada para o Hospital Materno Infantil.

A conselheira tutelar Roselei Galhardo informa que, infelizmente, esse não é um episódio isolado. Ela explica que os detalhes das denúncias e os casos atendidos são sigilosos, mas pontua, no entanto, que crianças negras de 0 a 11 anos de idade, de classe social baixa, são maioria entre as vítimas. “São crianças que chegam ao Conselho Tutelar com o psicológico muito abalado e sempre demonstrando medo”, comenta Roselei em entrevista ao jornal A Redação.

O Artigo 133 do Código Penal Brasileiro prevê pena de até três anos de detenção para quem abandonar uma pessoa que está sob cuidado, guarda, vigilância ou autoridade. Se o abandono resultar em lesão corporal grave, a pena pode aumentar para cinco anos. Já se o abandono resultar na morte da criança, a penalidade é de 12 anos de reclusão.

*Por Ludymila Siqueira

Fonte: A Redação

Fotos: Reprodução